October 26, 2021
New York, New York
New York, New York – Tenho vivido com este refrão na mente desde que regressei à cidade, faz agora cinco anos. Mas hoje, 20 de Março de 2020, deixei de ouvir a voz de Frank Sinatra. A cidade encontra-se sitiada por um inimigo tão letal quanto invisivel. Tem um nome pouco atractivo: Coronavirus ou, mais precisamente, Covid-19.
I want to wake up in a city that never sleeps
Sigo de metro apenas com três pessoas na mesma carruagem. O estado de calamidade foi decretado para depois de amanhã.
Pretendo realizar hoje a operação bancária que planeei ontem à noite; esta requer a atenção de um funcionário, não é automática.
A sucursal bancária, agora à minha frente, está fechada. Apanho um táxi e dirijo-me à sede. O condutor indiano diz-me que sabe de antemão que o ponto de destino está encerrado. Quando confirmo a informação recebida, este sugere levar-me a casa.
Abandono o táxi, quero andar um pouco para olhar à minha volta. Quantas vezes numa vida se vê New York vazio – vazio e paralizado?
Nada é comparável aos estados de emergência anteriores da minha vida. Levo luvas amarelas – das que se usam na cozinha – o que poderia parecer caricato, se as luvas não fossem agora objectos de uso essencial.
If I can make it there, I can make it anywhere
A ver se ao menos consigo ainda comprar um computador. De volta ao metro, o ruído sincopado do combóio é ensurdecedor. Sigo agora sozinha na carruagem. Apetecia-me, como sempre, entrar na intimidade dos passsageiros, a minha expressão indicando apenas absorção nos próprios pensamentos. Excepto que não há qualquer conversa a espiar à minha volta. Está tudo embaciado, cinzento.
A Grand Central Station está deserta. Não se vê ou ouve vivalma. O jazz desapareceu das esquinas solitárias. A gigantesca loja Apple anuncia num placard à entrada das escadas: "Closed until further notice."
Olho para cima e admiro o céu estrelado do tecto. Num recinto sempre atulhado de gente, nenhum transeunte apressado me empurrará hoje de um lado para o outro. Perco-me naquele azul esverdeado. O relógio de latão de quatro faces, que nunca deixo de admirar, marca as três e cinco da tarde. Por breves momentos, deixo-me levar pela noção de um tempo infinito, num espaço infinito.
Em seguida, deambulo pelas boutiques, as luzes das montras estão todas apagadas. Até o quiosque do New York Times encerrou. Sou invadida por um desejo irracional (como todos os desejos?) de arranjar as unhas com uma manicure afável e meticulosa.
These vagabond shoes are longing to stray
Pouco depois, já na entrada do meu prédio, confirmo com um dos porteiros, secretamente, que o número de casos desta doença infecciosa continua a alastrar. Diversas ambulâncias apressadas tinham levado idosos do local. Moradores com ar aflito, olhos pregados ao chão, continuam a partilhar os elevadores que os levarão ao topo do arranha-céus. Mantenho a distância social. Mesmo de luvas, não carrego em qualquer botão, espero que alguém o faça por mim. Sem máscara na face – esgotadas na cidade há muitos dias - receio que os meus vizinhos me confundam com uma adepta de Trump.
Saio no décimo-quarto andar sem tocar em nada, nem ninguém. Em casa, lavo as luvas demoradamente com sabonete e água morna. Como o álcool também esgotou, demoro um tempo interminável, vou precisar novamente de usar o meu único escudo protector. Depois, levo a tarde inteira a organizar-me para abandonar a cidade.
Start spreading the news, I am leaving today
Daí a poucas horas, camiões frigorificos encherão ruas inteiras de Manhattan. Dentro estarão os corpos que não há tempo de enterrar.
It's up to you, New York, New York
Andrew Cuomo está em guerra aberta com o presidente. Confio que conseguirá salvar a cidade neste momento do pânico mais profundo. Não seria a primeira vez que New York renasce das suas próprias cinzas.
Julieta Almeida Rodrigues escreve de acordo com a antiga ortografia.