A LUA DE BRUXELAS AND FELIX MIKAILOVITCH BY AMADEO LOPES SABINO
March 31, 2023
JAR: Tal como Zadie Smith - ou eu própria – você assume-se neste livro como um escritor fascinado pelo estudo da biografia. Neste caso, a figura de um escritor português do Séc XIX, Almeida Garrett, e de sua mulher Luísa, no período em que estes habitam Bruxelas. É uma cidade que você conhece bem, pois também viveu aí parte da sua vida. Descreva-nos um pouco o seu processo criativo: o que o conduziu a esta escrita intimista?
ALS: Eu não diria que a minha escrita é intimista. Escrevo tudo o que sinto, como disse Stendhal. E escrevo tudo o que vejo. Vi, encontrei, compreendi Garrett em Bruxelas. Olhei mais para ele do que para o meu íntimo. Vivemos, eu e ele, espaços e experiências similares em Bruxelas, hoje a capital da Europa, papel que Leopoldo I já pretendia para Bruxelas no tempo em que Garrett aí esteve. O que me interessa na biografia é meter-me na pele do biografado e viver o que ele viveu. E como viveu. Com Garrett, o processo foi fácil. A empatia, a simpatia, as vivências, o pensamento, tudo nos aproximava. Mas também me meto na pele de outros personagens dos meus livros, biografados ou pura e simplesmente ficcionados. Alguns pouco frequentáveis e nada estimáveis. Nesse sentido, faço o que faz o polícia, o detetive ou o ladrão: meto-me na pele daquele que persigo. Vivo a vida do outro, deixo a minha para outros espaços, que não a escrita.
JAR: Diz Zadie Smith num artigo intitulado In Defense of Fiction no New York Review of books, "...over time, I have striven to feel less shame about my compulsive interest in the lives of others and the multiple voices in my head". De facto, é com todos nós que nos interessamos por biografia. No diálogo final do romance, entre o cocheiro e Almeida Garrett, este rejeita ouvir o que aquele tem para lhe dizer. As palavras do cocheiro são por demais ameaçadoras, a verdade é qualquer coisa com que Garret não é capaz de conviver. E por isso você refere que o grande intimo de Almeida Garrett em Bruxelas é o Diabo. Explique-nos: que voz é esta?
ALS: A voz? As vozes! A cabeça de cada um de nós está cheia de vozes, a do escritor como a de toda a gente. A literatura ordena essas vozes e escolhe uma, outra ou várias. Escrevendo, o autor pode viver mais do que uma vida; vivendo apenas, vive uma só. Por vezes, uma das vozes é incómoda, destrutiva, e rejeitamo-la. É o caso do grilo-consciência de Pinóquio. Um personagem de outro dos meus livros afirma que a verdade é uma questão para padres e polícias, a ele não lhe interessa. A verdade era certamente insuportável, totalmente insuportável, antes de Freud. Hoje, há terapias que nos ajudam a suportá-la. Mas pode encarnar no Diabo, no Mal absoluto. Assim acontecia com o Garrett do meu livro, que detestava e temia a verdade. Et pour cause!
Em Felix Mikailovitch, outro dos meus livros em que Bruxelas é o cenário, o protagonista, que vive um adultério feliz em paralelo com o casamento (que, bem vistas as coisa, também é feliz), tem razões de sobra para preferir recusar a verdade. Nua e crua, sem o manto diáfano da fantasia de que falava Eça, a verdade significaria, para os personagens de Felix Mikailovitch, o desastre e a regra quotidiana do desassossego. Entendida enquanto realidade dos factos, a verdade é um lugar comum a evitar. No interrogatório a que Pilatos o submete, o próprio Cristo a define ironicamente através de uma tautologia: Veritas est quod est. A preocupação com a verdade não é a especialidade dos personagens dos meus livros. Nesta medida, sou um escritor realista.
JAR: Linda Santos Costa diz que A Lua de Bruxelas é uma meditação romanceada sobre o nosso país – o que me parece bastante acertado. Garrett deixa a Bélgica derrotado sob o ponto de vista pessoal e profissional. Assim sendo, o que acontece aos dois personagens principais deste livro depois da saida da Bélgica? Como é que Garret sobrevive? E em particular, o que se passa com a bela Luísa - qual Madame Bovary do contexto nacional? Em suma, como é que a sua ficção elucida a vida real dos personagens?
Pura e simplesmente não sei. Nunca sei o que se passa com os personagens dos meus livros depois da palavra FIM. Como em Casablanca, de Michael Curtiz, o que se passa com Rick e com Ilse? Os meus livros elucidam algo sobre o nosso país? Talvez. O Portugal de hoje repete os erros do passado e os do futuro. Falar de Portugal é fácil: não é necessária muita imaginação.
JAR: Apenas um à parte em relação ao que refere: é fascinante verificar como os portugueses continuam a criar as suas próprias amarras e vivem paralisados dentro delas. Todo o pensamento é circular, concêntrico. Uma vez, escrevi um poema sobre este estado de espírito. Quando o encontrar, vou inclui-lo aqui.
Amadeu, muito obrigada por mais esta conversa. Sei que está de novo a escrever, boa sorte! Julieta